Está adiado o sonho de o prémio Nobel da Paz, o bengali Muhammad Yunus, impulsionador do microcrédito, ver a fome restringida a museus para que o ser humano nunca se esquecesse das tragédias que a fome provoca. A fome foi e é, mais do que as guerras e a peste, a pior arma de destruição maciça! Foi e é responsável por inúmeros e silenciosos morticínios humanos.
Com a incompetência, a indiferença e a ganância instaladas há décadas na governação global, nos seus aliados institucionais (FMI, BM, OMC…) e em alguns fundos globais, sem ética, continuaremos a observar por muito tempo o nefando quadro da fome: ela instalou-se no nosso seio e já está a ceifar milhões de vidas.
As causas do espectro da fome global são múltiplas, todas previsíveis e evitáveis, não fossem os aprendizes de feiticeiro já citados terem dado ou obtido de bandeja todas as oportunidades para agravarem o mortífero tsunami silencioso da fome. De desregulamentação em desregulamentação, chegou-se à desenfreada especulação sobre os alimentos, prevendo a ONU que se possa chegar, se medidas estruturantes urgentes não forem tomadas, ao morticínio de cem milhões de pessoas! E não falo dos sofrimentos que o espectro da fome provoca, como aquele que observei na fronteira entre Jalalabad (Afeganistão) e Peshawar (Paquistão): adultos e crianças, tentando passar sorrateiramente, evitando bastonadas, alguns quilos de farinha para sobreviver! Nesse jogo do gato e do rato, uma menina afegã de oito anos morreu, marcando indelevelmente a minha consciência humana.
Que medidas estruturantes globais têm de ser já tomadas para acabar com a verdadeira escravidão biológica que é a fome? Impedir a especulação financeira sobre os alimentos, a grande detonadora do cataclismo actual; proibir a produção de biodiesel com alimentos e em áreas agrícolas destinados à alimentação dos seres humanos e animais (há alternativas!); adoptar medidas que evitem o agravamento das alterações climáticas a médio prazo, dado que algumas das suas consequências são já irreversíveis; aumentar as áreas de cultivo destinadas a alimentar seres humanos e animais. Já o falecido professor Josué de Castro, antigo presidente da FAO, demonstrava no seu magistral livro Geopolítica da Fome que o planeta, se bem gerido, poderia alimentar o dobro da população actual; regulamentar e controlar o preço dos combustíveis! Nunca as empresas petrolíferas e os estados ganharam tanto dinheiro como agora; acabar com as guerras travadas sob pretextos falaciosos e com as violações do Direito Internacional e da Carta das Nações Unidas, que só criam mais refugiados e mais conflitos. E por isso, também, mais esfomeados; aliviar a asfixia que sufoca os países mais pobres, perdoando-lhes as dívidas e os juros, e bloquear as contas faraónicas dos seus corruptos governantes, afim de se criar um fundo de desenvolvimento para esses países; acabar com as monoculturas de exportação, nos países economicamente subdesenvolvidos, incentivadas ou impostas pelos funestos planos de (des)ajustamento estrutural do FMI e BM; implementar um comércio justo entre os países ricos e pobres.
Não é com a injecção pontual de milhões de euros que se resolve a epidemia da fome. Se não se aplicarem as medidas estruturais referidas, o genocídio pela fome vai agravar-se. As primeiras vítimas dessa praga social criada pelo homem são sempre as mesmas: os miseráveis dos países mais pobres. Por efeito de ricochete, seremos todos atingidos. Temos de reagir todos e agora, pois o espectro da fome já está entre nós!
Fernando Nobre
Presidente da AMI
Presidente da AMI
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